Edmilson Schinelo é assessor do CEBI e organizador dos livros Leitura Bíblica: a juventude mostra o caminho e Bíblia e Negritude
Uma longa viagem de Jesus e de seus discípulos,
cansaço, fome... Chegaram a colher espigas em roça alheia, num dia de
sábado (Lucas 6,1-5). Depois de curar muita gente (Lucas 6,6-11.18-19),
de proclamar as bem-aventuranças (o que em Lucas acontece numa planície -
cf. 6,17.20-26), e de orientar seus discípulos, Jesus finalmente chega
em casa, na cidade de Cafarnaum. Mal acabou de entrar na cidade e é
procurado por lideranças judaicas da cidade (anciãos ou presbíteros).
Eles vêm a pedido de um centurião romano, cujo servo está muito doente.
Insistem que Jesus vá salvá-lo (Lucas 7,1-3).
O descanso fica para depois e Jesus se desloca,
então, à casa do centurião. No caminho, amigos do centurião vão ao seu
encontro com novo recado: Senhor, não te incomodes, porque não sou digno
de que entres em minha casa... A frase nos é muito conhecida: uma
palavra de Jesus bastaria para que a cura acontecesse, para que a
salvação se realizasse (Lucas 7,6-7).
Jesus fica admirado com a fé do centurião, que é
estrangeiro: Eu vos digo que nem mesmo em Israel encontrei uma fé como
esta! (Lucas 7,9). E, sem que o texto mencione as palavras curadoras de
Jesus, a cura acontece. A narrativa se conclui afirmando que ao
voltarem para casa, os enviados encontraram o servo em perfeita saúde
(Lucas 7,10).
Dois protagonistas marginais
Por motivos bem diferentes, Jesus e o centurião, os
protagonistas do episódio, ocupam lugares marginais em seu meio. Jesus é
profeta, consciente da situação de opressão vivida por seu povo, mas
nem sempre bem aceito em sua própria terra. Ele mesmo havia afirmado:
Nenhum profeta é bem recebido em sua pátria! (Lucas 4,24). O centurião,
por sua vez, representava o poder colonizador e tirano dos romanos.
Comandando a centúria (tropa romana de cerca de cem soldados), ele tem o
papel de garantir a "ordem pública" e assegurar a cobrança dos tributos
(em Cafarnaum, especialmente os impostos da pesca). A serviço de Roma
ou de Herodes Antipas, representa os interesses de uma pequena elite.
Não é preciso muito esforço para imaginar o quanto a população local o
rejeitava.
Na versão apresentada por Mateus (Mateus 8,5-13), é o
próprio centurião que se dirige a Jesus. E tal como a legião de
demônios (Marcos 5,12; Mateus 8,31), ele implora a Jesus. O
representante das forças do império se dobra às forças do Reino. Em
Mateus, a fé do centurião é destacada (em contraste com a pouca fé dos
israelitas). Mas também se destaca o poder de Jesus em relação ao do
centurião.
De maneira diferente, o relato de Lucas, quer mostrar
outra imagem do centurião: ele não se sente digno sequer de ir até
Jesus, envia alguns dos anciãos dos judeus. E estes o apresentam como
uma pessoa que ama a nação judaica. Teria até construído (ou mandado
construir) a sinagoga da cidade (Lucas 7,5). Sabemos que o evangelho de
Lucas tem a tendência de amenizar o papel opressor dos romanos. É o
único relato no qual até na cruz Jesus perdoa os soldados, porque não
sabem o que fazem (Lucas 23,34). Mesmo assim, chama a atenção não só a
fé, mas também a bondade do centurião, demonstrada pelo amor à população
local e pela preocupação com o servo doente. Se ele foi de fato tal
pessoa, não teria sido bem visto pelo próprio império romano. Neste
caso, teria feito a escolha de "estar à margem" pela maneira com que
usou seus privilégios (sua fortuna ou sua autoridade).
Salvar uma pessoa para devolvê-la à escravidão?
Bem mais à margem é a condição do jovem doente. O texto o apresenta inicialmente como um servo ou escravo (no grego, doúlos). Seria "vantajosa" a cura para que ele voltasse à condição de escravo? Que salvação seria essa? Que libertação lhe traria Jesus? Curar uma pessoa para devolvê-la à escravidão do império?
Bem mais à margem é a condição do jovem doente. O texto o apresenta inicialmente como um servo ou escravo (no grego, doúlos). Seria "vantajosa" a cura para que ele voltasse à condição de escravo? Que salvação seria essa? Que libertação lhe traria Jesus? Curar uma pessoa para devolvê-la à escravidão do império?
Parece ser outra a compreensão da comunidade lucana.
Se, por um lado, a cura representa a antecipação do Reino definitivo,
este Reino também se adianta pela forma com que é descrita a relação
entre o centurião e seu servo. O texto afirma que ele o estimava muito
(Lucas 7,2). Não se trata, entretanto, de uma "estima" em função do
valor financeiro ou laboral do servo. O termo é o mesmo utilizado pela
primeira carta de Pedro ao falar de Jesus: a pedra rejeitada pelos
homens, para Deus é a pedra preciosa (2Pedro 2,4). Trata-se de uma
estima especial, um carinho precioso.
Qual seria a relação entre o centurião e essa pessoa?
Não há como saber. De qualquer forma, não se trata de relação
senhor-escravo. Isso fica mais claro quando os amigos transmitem o novo
recado do centurião: Não sou digno de que entres em minha casa... Mas
dizei uma palavra e o meu rapaz será curado (Lucas 7,7). Quando faz uso
da fala, o centurião não o chama de servo (doúlos), mas de "meu rapaz". O
termo grego é "pais", que em outros contextos é traduzido por jovem,
menino, criança e até filho (Lucas 8,54; João 4,51; 6,9). Para o
centurião, a pessoa a ser curada é o seu rapaz, o seu jovem.
Como o texto usou antes e volta a usar depois o
termo servo, é menos provável tratar-se aqui de criança ou filho. Mas é notável que não nos é apresentada a imagem de um soldado tirano,
violento, fazendo valer sua força e sua autoridade para conseguir seus
interesses. Ao contrário, trata-se de um estrangeiro sensível à
população local e muito mais ainda ao rapaz que está doente. Mais do que
um servo, ele tem um companheiro. Mesmo em meio a sistemas tiranos!
Mais uma vez, um estrangeiro "pagão" é apresentado
como modelo de fé e de bondade: compromisso solidário também assumido
pelo samaritano (Lucas 10,29-37), apresentado a nós hoje como convite e
desafio. Tal como o centurião, sejamos capazes de, pela confiança e pelo
jeito de vivermos novas relações, despertar a admiração de Jesus (Lucas
7,9).
- Pastora Odja Barros passa a integrar a Junta Diretiva do CLAI
- Carta denuncia terrorismo de Estado contra povos indígenas
- Espiritualidade cristã exige uma Igreja mais samaritana
- Primavera Árabe.: os cristãos são aqueles que mais perderam, destaca Elias Ch...
- História de Israel contada em livro de Sandro Gallazzi
0 comentários :
Postar um comentário
Mensagens ofensivas não serão publicadas. As da pequena oposição não serão sequer lidas! A confirmação da mensagem serve para identificar através do ID pessoas que se utilizam do anonimato para enviar mensagens ofensivas!